O Tribunal Superior do Trabalho (TST) consolidou um entendimento que pode mudar a rotina de ações trabalhistas no país: a geolocalização pode ser usada como prova digital para confirmar jornada e presença em atividade externa, desde que o monitoramento fique estritamente limitado ao período de trabalho e aos locais onde o empregado desempenhava suas funções. O recado é duplo. De um lado, o tribunal sinaliza que a Justiça do Trabalho está pronta para lidar com evidências tecnológicas como dados de GPS. De outro, deixa claro que não aceitará devassa na vida privada do trabalhador. A construção desse equilíbrio foi conduzida em decisões relatadas pelo ministro Douglas Alencar Rodrigues, julgadas em 2 de setembro e 8 de outubro de 2025, nos processos TST-ROT-23369-84.2023.5.04.0000 e TST-RR-0010538-78.2023.5.03.0049.
Em um dos casos (TST-ROT-23369-84.2023.5.04.0000), envolvendo um propagandista da indústria farmacêutica Sanofi Medley, o TST autorizou o uso dos dados de localização do celular corporativo para conferir a jornada alegada — mas impôs travas rígidas. A Subseção II Especializada em Dissídios Individuais (SDI-2) reconheceu a utilidade da prova, mas restringiu o acesso ao período contratual entre 4 de julho de 2017 e 13 de abril de 2021 e determinou sigilo absoluto sobre as informações. Isso significa que os dados não podem ser expostos de forma ampla no processo e só podem ser usados para aferir questões ligadas ao trabalho, como a duração do expediente ou o deslocamento em visitas externas a clientes. A decisão foi aprovada por maioria, com votos vencidos de ministros que viram risco de invasão de privacidade, o que evidencia que o tema ainda gera tensão dentro do próprio tribunal.
No outro julgamento (TST-RR-0010538-78.2023.5.03.0049), que envolveu uma bancária do Itaú Unibanco em Minas Gerais, a 5ª Turma do TST entendeu que negar a coleta da geolocalização para fins de prova configurou cerceamento de defesa. O banco queria usar dados de GPS para contestar o pagamento de horas extras, mas teve o pedido recusado em instâncias inferiores. A Turma mandou reabrir a fase de produção de prova e autorizou a coleta controlada desses dados. Na prática, o TST disse que a tecnologia pode — e deve — ser considerada, desde que o acesso seja proporcional e necessário ao processo. A decisão foi unânime.
Para o ministro Douglas Alencar Rodrigues, esses casos mostram que a Justiça do Trabalho precisa lidar com tecnologia sem ignorar garantias individuais. Ele apontou que a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e o Marco Civil da Internet permitem o uso de dados pessoais e registros digitais em juízo, desde que a finalidade seja legítima e que haja proteção contra exposição indevida. Traduzindo: o juiz pode autorizar o uso do GPS do empregado para descobrir se ele estava em rota de trabalho às 15h de uma terça-feira — mas não para mapear onde ele dorme, com quem se encontra ou por quais lugares circula no fim de semana. A geolocalização, nesse entendimento, não é escuta clandestina nem vigilância permanente. É uma fotografia técnica de presença, usada para testar a veracidade das alegações.
O efeito imediato desse precedente é trazer mais objetividade para discussões clássicas da Justiça do Trabalho, como horas extras, tempo à disposição e trabalho externo. Empresas que operam com equipes em campo — vendedores, representantes comerciais, entregadores, motoristas, bancários em atividade de captação — passam a ter um caminho jurídico mais sólido para apresentar dados técnicos e não só testemunhos. Ao mesmo tempo, o TST deixou explícito que não está abrindo a porta para monitoramento geral da vida do trabalhador. O tribunal exige que o pedido seja específico (qual período? qual local? qual fato controvertido?) e que as informações fiquem sob sigilo processual, acessíveis apenas às partes e ao juiz.
Para advogados trabalhistas, o movimento do TST inaugura um modelo de “prova digital controlada”: a tecnologia entra de forma ativa na reconstrução dos fatos, mas sob regras de proporcionalidade, privacidade e necessidade. Na prática, isso reduz margem para fraude em controle de ponto e enfraquece disputas baseadas apenas em versões opostas, ao mesmo tempo em que protege o empregado contra a captura irrestrita de sua rotina pessoal. O recado institucional é que o processo trabalhista entra de vez na era da rastreabilidade — sem normalizar vigilância.
ISSN 3086-0415, edição de Luiz Ugeda.
Fonte : https://geocracia.com