Qual a importância em se falar de duração do trabalho e a jornada de trabalho como medida de mitigação das mudanças climáticas?
Inicialmente recorremos ao exemplo histórico do Japão que, como medida de readequação da produção e das atividades econômicas, após a destruição do país na 2ª Guerra Mundial (fato notório, inclusive tendo sido no final alvo de bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki), construiu uma nova forma de gestão para evitar desperdícios da produção em massa, o que trouxe ganhos na produtividade econômica, não se podendo aceitar passivamente interpretações equivocadas, parciais e meramente ideológicas que identificam isso apenas como um novo momento do capitalismo para favorecer a flexibilidade do trabalho e diminuir a proteção do trabalhador. [1]
Pensando a essência do trabalho
Pensar a jornada de trabalho é refletir sobre a essência do trabalho, das condições de trabalho como um todo, das diferentes perspectivas dos diferentes sujeitos do trabalho. E agora também é necessário que se enquadre essa reflexão em parâmetros de pegada ecológica e sustentabilidade.
Já é deveras conhecido (ver por exemplo o clássico estudo do Clube de Roma há mais de 50 anos) que o crescimento econômico não pode ser infinito e ilimitado, pois os bens ambientais são limitados. E, ademais, eles possuem alteridade e dignidade própria, não podendo ser avaliados em parâmetros exclusivos de eficiência econômica, e valor intrínseco. A abordagem utilitarista e instrumental se torna extremamente deficiente em termos de bens ambientais.
O próprio trabalho, seja na forma individual, seja na forma coletiva (o que é aliás a empresa senão uma lógica de organização do trabalho, não é só isso, mas só isso já é muita coisa e também é a parte principal da empresa, ousamos dizer), é um bem ambiental.
Deve ser exigido desta forma que todo trabalho e todo o trabalho traga uma avaliação do seu impacto ambiental e pegada ecológica, bem como sua repercussão na sustentabilidade em suas múltiplas dimensões (ambiental, ecológica, trabalhista, saúde física e mental, segurança econômica, social etc).
Conhecimento do trabalhador de sua atividade e da cadeia produtiva
Todo trabalhador deve ter a capacidade de deter o conhecimento sobre o impacto que sua atividade e da empresa e da cadeia produtiva em que se insere, o impacto sobre os bens ambientais, sobre o meio ambiente como um todo (natural e artificial). Conhecimento em especial sobre os impactos em termos de emissão de gases de efeito estufa. Tal conhecimento já se tornou prática comum em várias atividades de consumo e transporte (por exemplo, quem já não recebeu essa informação em termos de voos aéreos para poder dimensionar a pegada ecológica do voo e ações de sustentabilidade da empresa de transporte aéreo para mitigar essa pegada), e não vemos razão ou argumento técnico-científico que impeça essa construção.
Temos um paradigma importante no Estatuto do Trabalhador na Itália, em seu artigo 9º, sobre o direito do trabalhador em termos de pesquisa científica sobre os impactos do trabalho em sua saúde. Na Constituição brasileira, é possível, de forma sintética, fazer relação direta do trabalho com a educação, ciência, tecnologia, inovação e cultura (aliás o bios grego foi indevidamente traduzido como meramente biológico, mas ele é um modo de viver, de fazer, de criar que caracteriza a civilização [2]).
Logo é necessário que o trabalhador detenha maior controle ambiental e ecológico sobre sua jornada de trabalho, sobre a duração do seu trabalho, para que seja, no mínimo, reduzido o impacto sobre os bens ambientais e, na melhor das hipóteses, que a sua jornada seja voltada para a reconstituição e restauração dos processos ecológicos essenciais à vida, conforme está no artigo 225 da Constituição, dentro da noção de meio ambiente.
Não se trata de falar em redução de jornada, ainda mais quando isso vira apenas uma bandeira meramente político-partidária ou ideológica, seja reacionária, seja revolucionária, seja de direita, seja de esquerda, sem qualquer diálogo real e efetivo entre as partes envolvidas. Reduzir a jornada, assim na forma simplesmente quantitativa, dadas as múltiplas formas de gestão do trabalho, de fiscalização e controle (a dimensão digital cada vez mais exacerbada inclusive com a ampliação trazida pela inteligência artificial, internet das coisas, Blockchain, Metaversos, realidades ampliadas e simuladas e em breve pela computação quântica; mecanismos psicossociais como empreendedorismo, coaching etc) não vai por si só realizar melhorias nas condições de vida do trabalhador e de toda a sociedade.
Pode-se impor, por exemplo, uma sobrecarga excessiva no trabalho, reduzindo a quantidade de horas no dia, mas exigindo uma atividade mais excessiva nas horas diminuídas (a pessoa em sete horas pode ser obrigada a apresentar por exemplo o que faria normalmente em oito ou nove horas [3]), comprometendo a saúde física e mental do trabalhador e a degradação do meio ambiente e dos bens ambientais.
Consciência do impacto ambiental de seu trabalho
Insistimos: quando o trabalhador possuir mais controle sobre o impacto ambiental gerado pelo seu trabalho, pela sua empresa e pela cadeia produtiva em que essa empresa se insere, ele se tornará sujeito responsável na necessária transição, transformação socioambiental necessária, que Friotj Capra e Ugo Mattei vão chamar de revolução ecojurídica. [4]
Não é secundária, ao contrário, é fundamental a identificação do trabalhador em si, de sua pessoa como um bem ambiental, ele é um ser biológico que tem a sua saúde. A poluição ambiental em várias circunstâncias é também poluição trabalhista. As duas formas de poluição devem ser combatidas e enfrentadas de forma conjunta. Esse deve ser o paradigma principal de um Estado socioambiental de Direito.
Como falar, por exemplo, em sustentabilidade e transição energética sem abordar a jornada de trabalho, que é a principal forma de energia das atividades econômicas? A desconsideração da jornada de trabalho no processo ambiental tem se tornado cada vez mais absurda.
A transformação ambiental necessita ser aplicada na jornada de trabalho em várias dimensões e não apenas de forma simplória na quantidade semanal de horas de trabalho. Tratamentos simplórios e unilaterais só favorecem abordagens meramente ideológicas, polarizações políticas, das quais já estamos fartos, que em nada contribuem para solucionar os problemas socioambientais, urgentes e prioritários.
Melhorias na jornada de trabalho
A partir do que foi aqui tratado, podem surgir várias formas de melhoria: aumentos de intervalos e pausas no trabalho, redução da quantidade excessiva de trabalho extraordinário e, por fim, aí sim, a redução da jornada de trabalho e da duração do trabalho como um todo. As instituições públicas também precisam aprender a dialogar e participar, colaborar, ajudar na construção de prioridades, com simplicidade, humildade e complexidade.
Por exemplo, o Ministério Público do Trabalho antes de oferecer apoio a uma redução da jornada de trabalho por proposta de emenda constitucional deve favorecer um processo legislativo mais simples que implique na redução do excesso de trabalho extraordinário (que tanto já contribui para desastres, acidentes e doenças do trabalho). E isso pode e deve ser feito pelo afastamento do paradigma normativo e institucional da Consolidação das Leis do Trabalho que permite trabalho extraordinário por simples acordo entre as partes (que na maioria das vezes nem acordo é, ou o trabalhador é praticamente coagido a cumprir o trabalho extraordinário por exigência do empregador sob pena de perder o emprego, ou até pressiona o empregador por trabalho extraordinário para aumentar a sua renda econômica, ambas as hipóteses comuns e absurdas diante do paradigma ambiental).
Reitero: a alteração dos motivos de trabalho extraordinário não depende de emenda constitucional, processo legislativo bem mais complexo e difícil, mas de simples lei ordinária.
Este processo de transformação tem de ser construído em clima, atmosfera de diálogo socioambiental pelos diferentes sujeitos, trabalhadores, empresas, sindicatos, associações, representantes, instituições públicas, privadas e sociais, vizinhança e comunidade, [5] dentre outros sujeitos, aqui citados apenas exemplificativamente.
A questão do dano ambiental e da precarização do trabalho trazido pela jornada excessiva e agressiva à saúde física e mental também terá de ser enfrentada de forma mais incisiva. Já existe o tipo do artigo 149 do Código Penal, o qual inclui como elemento caracterizador do crime de redução à condição análoga a escravidão a jornada excessiva. Está clara a necessidade de uma abordagem e ação que ultrapasse o paradigma do adicional remuneratório (que muitas vezes não é nem pago) e vincular-se a outros parâmetros tais como o direito fundamental de proteção contra a tortura e tratamento degradante (dentre os quais se inclui claramente a obrigação de não gerar ou causar sofrimento físico e mental por violência, ora, a jornada excessiva e prolongada é sim uma forma extrema de violência e negação da pessoa).
É o irredutível humano, direito fundamental absoluto que não admite exceção, a tal ponto que é um direito que só se manifesta por meio de uma negação, uma interdição, um bem que chega ao ponto de ser mais precioso que a vida. [6] Um não que na filosofia de Lévinas vamos buscar na lógica da alteridade e no rosto do outrem, no não matarás. Matar pode ocorrer de várias formas, e pode ser feita pela tortura, por coisas que podem até parecer pequenas e triviais, mas se acumulam e destroem a pessoa.
Jornada extraordinária excessiva
A jornada extraordinária excessiva deve ser compensada através de dano moral, dano existencial e as mais diferentes formas de dano e responsabilidades que têm sido construídas e ampliadas no direito ambiental, baseadas na proteção integral. A carne mais barata no mercado não pode mais ser a carne negra, a carne dos mais pobres, como nos alerta a saudosa Elza Soares [7], imagem da esperança em um edifício da rua da Consolação, mas que chegue logo não só a consolação, mas a paz, a justiça, a misericórdia e o diálogo.
Jornada extraordinária excessiva entendida aqui não somente como quantidade de horas, mas como falta de previsibilidade do trabalhador do seu horário de trabalho (o que sói ocorrer em várias formas de trabalho precárias e degradantes, em especial no trabalho intermitente e no chamado contrato “zero hora”), ou mesmo pela jornada que impeça o trabalhador de conciliar a sua vida profissional com a vida familiar (em hipóteses de necessidade de assistência de idosos, crianças, pessoas com deficiência etc).
Em termos de direitos ambientais e climáticos, dentre os quais também se inclui o meio ambiente do trabalho, não é apenas a omissão ou ausência de medidas voltadas para adaptação e mitigação diante das mudanças climáticas que gera responsabilidade do Estado ou do poder público, mas também resta proibida a proteção deficiente ou insuficiente em matéria climática. [8]
O Ministério Público do Trabalho, através de seu grupo de estudos Impactos das Mudanças Climáticas no Meio Ambiente de Trabalho, propugna pela valorização de meio ambiente do trabalho seguro e saudável e pela prioridade de duração do trabalho e jornada de trabalho não só sustentáveis, mas banhados na sustentabilidade. E foi aprovado no biênio 2026/2027 como atividade estratégica nacional também essa mesma meta de atuar diante dos impactos ambientais no trabalho trazidos pelas mudanças climáticas. E a jornada de trabalho, a duração de trabalho serão temas centrais nessa abordagem.
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Referências
CAPRA, Frijtof & MATTEI, Ugo. A revolução ecojurídica: o Direito sistêmico em sintonia com a natureza e com a comunidade. Tradução Jeferson Luiz Camargo. São Paulo: Editora Cultrix, 2018.
DELMAS-MARTY, Mirelle. Por um direito comum. Tradução Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
LÉVINAS, Emmanuel. Ética e Infinito. Tradução João Gama. Coimbra: Edições 70, 2023 (Biblioteca de Filosofia Contemporânea).
POLIZELLI, Demerval Luiz. Meio ambiente e gestão do conhecimento: dos higienistas à sociedade de informação. São Paulo: Almedina, 2011.
SARLET, Ingo Wolfgang & WEDY, Gabriel & FENSTERSEIFER, Tiago. Curso de Direito Climático. São Paulo: Thomson Reuters, 2023.
SEU JORGE; YUKA, Marcelo & CAPPELETTE, Ulisses. In Do Cóccix até o Pescoço. Intérprete/Artista: Elza Soares, gravadora Maianga, 2002.
STATUTO DEL LAVORATORI. Milano: Garzanti, 2020.
[1][1] POLIZELLI, Demerval Luiz. Meio Ambiente e Gestão do Conhecimento: dos higienistas à sociedade de informação – o papel da administração e uso das redes sociais para a era da “desfabricação em massa”. São Paulo: Almedina, 2011.
[2] Aliás, a deficiência da tradução é comum na cultura jurídica e na cultura em geral. Abusa-se de termos estrangeiros sem a devida contextualização, o que lembra aliás a tradução de títulos de muitos filmes internacionais, totalmente absurdos, tais como nomes sugestivos (por exemplo a conversação) no original que se transformam em nomes absurdos e diretos diretamente do viés do tradutor, muitas vezes até fornecendo spoiler (antecipação) do final da história (tipo a terrível tragédia da morte e do assassinato). Isso compromete a comunicação e a própria cidadania democrática no Direito.
[3] Em atividades intelectuais já se vê essa sobrecarga logo após o período de feriados prolongados, o que fere a própria lógica de existência de feriados.
[4] CAPRA, Frijtof & MATTEI, Ugo. A revolução ecojurídica: o Direito sistêmico em sintonia com a natureza e com a comunidade. Tradução Jeferson Luiz Camargo. São Paulo: Editora Cultrix, 2018.
[5] O trabalhador se insere em uma vizinhança e comunidade que de forma direta e indireta é impactada ambientalmente pelas atividades da empresa. Como não inserir essa mesma comunidade e vizinhança no processo de adequação da jornada de trabalho? Sempre com a finalidade social mais ampla, não restrita apenas à relação de emprego ou de trabalho, mas com a finalidade de reduzir e, insisto, aproximar-se da eliminação da degradação do meio ambiente, ou até mesmo buscar a restauração do equilíbrio ambiental. Neste sentido, a redução da jornada de trabalho tem de ser fomentada ou até condicionada à maior participação comunitária do trabalhador, ou então será vazia.
[6] DELMAS-MARTY, Mirelle. Por um direito comum. Tradução por Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 184-185.
[8] SARLET, Ingo Wolfgang; WEDY, Gabriel & FENSTERSEIFER, Tiago. Curso de Direito Climático. São Paulo: Thomson Reuters, 2023, p. 169.
é procurador do Ministério Público do Trabalho, diretor e professor da Escola da Associação Nacional dos Procuradores e Procuradoras do Trabalho, professor da Pós Graduação em Direito Digital da Escola Mineira de Direito, mestre em Direito e Sociologia pela UFF e coordenador do grupo de estudos Impactos das mudanças climáticas no meio ambiente do trabalho da Coordenadoria de Defesa do Meio Ambiente do Trabalho e saúde do trabalhador e da trabalhadora.