É isto uma democracia?

A pretexto de reagir ao assassinato de um ativista conservador, Trump coloca a máquina do Estado contra quem ele considera dissidente. É um desastre moral para o outrora ‘farol da democracia’

O tiro que matou o ativista conservador Charlie Kirk acertou em cheio a jugular da democracia liberal americana. O atentado foi um ataque ao mecanismo que permite cidadãos resolverem conflitos sem se ferirem: a palavra. “Quando as pessoas param de conversar, é aí que você tem violência.” Essa verdade, dita pelo próprio Kirk, deveria guiar a reação. Em vez disso, o que se vê é o emprego do aparato persecutório do Estado para punir quem fala o que desagrada. É uma violação legal e um desastre moral.

A esquerda iliberal há anos equipara palavras a “violência”, cria categorias elásticas como “discurso de ódio” e aplaude o cancelamento. O resultado está à vista nas universidades: uma geração treinada a ver o dissenso como agressão e disposta a aceitar a agressão como resposta ao dissenso. Pesquisas mostram que um em três estudantes considera justificável “em alguns casos” usar violência para impedir um orador. Essa corrosão ajuda a explicar por que tantos celebraram a morte de um adversário. Eles merecem reprovação moral e contestação pública, não linchamentos digitais.

Seria de se esperar da direita um contrapeso. Mas o que se vê é o trumpismo copiar o manual que condenava. No país cuja Suprema Corte definiu que mesmo ideias odiosas são protegidas pela Primeira Emenda, salvo em caso de risco de violência claro e iminente, a secretária de Justiça prometeu “ir atrás” de quem praticar “discursos de ódio”. O vice-presidente incentiva patrulhas virtuais contra os que zombaram da tragédia. O chefe da agência reguladora de radiodifusão ameaça cassar licenças para constranger emissoras. E o próprio presidente volta a mover ações bilionárias contra jornais e jornalistas, e fala em classificar entidades civis como “terroristas” ou em revogar isenções fiscais por motivos políticos. Isso não é justiça. É justiçamento e perseguição.

Adicionando insulto à agressão, tal comportamento trai o legado de Kirk da maneira mais brutal. Seu trabalho – controvertido no conteúdo, claro no método – era interpelar, ouvir, responder, insistir. Mas a direita trumpista aproveita-se do luto como combustível para uma cruzada punitiva, equiparando palavras a violência para justificar coerção oficial. O resultado previsível é mais silêncio forçado, mais ressentimento, mais incentivos a soluções de força. Repressão não desarma radicais; oferece-lhes a narrativa de mártir e empurra moderados para a autocensura.

Uma sociedade livre precisa de dois princípios gêmeos: tolerância máxima ao discurso e tolerância zero à violência. O primeiro não é um favor ao “nosso lado”; é um seguro democrático para todos, especialmente minorias e dissidentes. Foi essa aposta que fez dos EUA uma exceção: nazistas e comunistas podem marchar; fanáticos, insultar; artistas, ultrajar – e a resposta legítima é crítica, protesto, sátira, boicote e mais discurso. O segundo princípio protege o primeiro: quem ameaça, agride, bloqueia palestras ou destrói propriedade para calar o outro deve ser contido e punido, com o rigor da lei.

Os americanos sabem, por amarga experiência, que a censura não reduz ódio; empurra-o para subterrâneos onde se radicaliza. E sabem, por tradição constitucional, que “discurso de ódio” não é categoria jurídica. O caminho civilizado é outro: proteger a praça pública, reforçar a segurança de eventos controversos, punir quem recorra à força e recusar que governos, de esquerda ou de direita, transformem o gosto do príncipe em lei. Há espaço para decência privada – inclusive demitir quem viola códigos internos –, mas não para a polícia das opiniões.

O futuro da democracia americana dependerá da capacidade de lideranças e instituições de rejeitar o iliberalismo, venha de onde vier. Isso exige, mais do que decretos e coletivas, coragem cívica. Coragem de suportar o abjeto sem criminalizá-lo; de discutir com quem erra sem destruí-lo; de lembrar, em meio ao trauma, que o antídoto da violência é mais debate, não menos. Quem quiser honrar a vítima, que honre o princípio pelo qual viveu e morreu: a máxima tolerância à opinião e a intolerância absoluta à violência.

Fonte : https://www.estadao.com.br/opiniao/e-isto-uma-democracia

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