No último dia 6 de outubro, o Supremo Tribunal Federal finalmente realizou a audiência pública sobre a pejotização das relações de trabalho. O caso, originado de uma ação trabalhista contra uma empresa de seguros, discute a alegada fraude em um contrato de franquia. Ao admitir a repercussão geral do recurso, a corte delimitou três eixos de análise: a competência da Justiça do Trabalho para julgar fraudes em contratos civis; a licitude da contratação de autônomos ou pessoas jurídicas à luz do precedente da ADPF 324; e o ônus da prova sobre a fraude.
O simples reconhecimento da relevância constitucional da questão já sinaliza, implicitamente, que a pejotização não se confunde com a terceirização lícita. Caso contrário, o julgamento seria desnecessário, pois os precedentes da ADPF 324 e do Tema 725 já teriam pacificado a matéria.
Com efeito, a ratio decidendi da ADPF 324 e do Tema 725 pressupõe uma relação interempresarial legítima, baseada na autonomia entre contratante e contratada, o que não ocorre com a pejotização, modalidade de fraude por simulação que promove a recategorização jurídica do trabalho. Sob o manto da formalidade contratual, o trabalhador é deslocado da condição de sujeito protegido pela CLT para uma categoria jurídica civil-empresarial, que o despoja das garantias materiais e processuais típicas do direito do trabalho.
Dependendo do entendimento que prevalecer, o trabalhador pejotizado poderá ser forçado a um duplo litígio: primeiro, na Justiça Comum, para anular o contrato fraudulento, e só depois na Justiça do Trabalho, para ver reconhecido seu vínculo empregatício. Trata-se de uma barreira ao acesso à justiça, com custos econômicos adicionais e agravamento da morosidade processual, em um sistema judicial já sobrecarregado.
Outro ponto de interesse no julgamento, presente no item II do Tema 1.389, é a distinção entre pejotização e trabalho autônomo — a chamada “autonomização simulada” —, que, enfim, parece ter sido reconhecida pela corte. A primeira refere-se à fraude de natureza societária, marcada pela interposição de uma pessoa jurídica fictícia; a segunda, à fraude civil, em que o trabalhador é falsamente tratado como autônomo, embora exerça atividades típicas de um empregado.
A importância de o STF ter incluído ambas as figuras — trabalhador autônomo ou PJ — reside na necessidade de se fornecer um comando vinculante que de fato abranja a totalidade dos artifícios utilizados quando da contratação da força de trabalho, contribuindo para que os fenômenos jurídicos sejam enfrentados a partir de sua verdadeira natureza e complexidade. É fácil compreender que não há respaldo semântico para tratar como “pejota” o trabalhador (pessoa física) que não haja constituído, formalmente, empresa individual ou outra forma de sociedade. É importante notar que, em alguns casos, o próprio STF tem usado o termo “pejotização” para situações em que o trabalhador sequer possuía CNPJ, como na Reclamação 61.405 [1], envolvendo uma dentista e uma clínica odontológica.
Por outro lado, a decisão promete abranger diversas modalidades de contratação, de corretores a desenvolvedores de TI. No entanto, ao agrupar profissões com naturezas e regulamentações tão distintas, a corte corre o risco de gerar novos conflitos interpretativos e insegurança jurídica. Ao entender que a controvérsia constitucional do Tema 1.389 transcende os limites do caso originário (contrato de franquia), dada sua relevância jurídica, social e econômica, o STF asseverou que a decisão abarcará as mais diversas modalidades de contratação civil e comercial, incluindo, nesse espectro, a título exemplificativo, os contratos com representantes comerciais, corretores de imóveis, advogados associados, profissionais da saúde, artistas, desenvolvedores de TI e entregadores, entre outros.
No entanto, ao reunir profissões com regulamentações específicas, e cuja dinâmica, remuneração, perfil profissional e natureza funcional diferem, significativamente, entre si, o STF não se furtará ao risco de intermináveis conflitos interpretativos e propagação da insegurança jurídica.
O que se percebe é que todo o problema está posto em forma de – se não um falso debate um debate pouco claro, haja vista que não houve, no âmbito da Justiça do Trabalho, reiterados questionamentos envolvendo, in abstrato, a validade dos contratos civis e comerciais firmados por estas e outras categorias profissionais, regulamentadas ou não.
A casuística trabalhista envolve o enfrentamento de casos afetos a toda a sorte de trabalhadores, cujo ponto de interesse não extrapola, em primeira análise, a aferição dos requisitos legais empregatícios, questões que compreendem a maioria absoluta das reclamações constitucionais trabalhistas que mais recentemente chegaram ao STF, relacionadas à pejotização.
Debate extrapola os limites da pejotização
Em outras palavras, a controvérsia lançada no item II do Tema 1.389 (qual seja: “a licitude da contratação civil/comercial de trabalhador autônomo ou de pessoa jurídica para a prestação de serviços, à luz do entendimento firmado pelo STF no julgamento da ADPF 324”) somente poderá ser enfrentada na medida em que se examine seus contornos fáticos específicos e concretos, o que não se amolda à seara do Recurso Extraordinário, na forma da Súmula 279 do STF [2].
Nesse contexto, é certo que o Supremo não poderá oferecer uma pacificação definitiva ao referido debate, salvo se ousar pronunciar-se no sentido de retirar do ordenamento jurídico o instituto da fraude, ou revogar, de súbito, a obrigatoriedade do regime público empregatício – o que parece ser o verdadeiro cerne da questão, desde o início posto de forma silenciosa e sub-reptícia.
O dilema instaurado pelo discurso de que a Justiça do Trabalho desrespeita os precedentes do STF, portanto, mascara o verdadeiro problema: a ideia de normalizar a recategorização jurídica do trabalho ao argumento da liberdade contratual. No fundo, a discussão transcende os limites da pejotização, uma vez que o julgamento do Tema 1.389 coloca em xeque o futuro do regime público de emprego e o financiamento da seguridade social.
Entre a proteção e a formalização da fraude, entre o vínculo real e a ficção jurídica, o STF será chamado a decidir não apenas sobre o alcance de seus próprios precedentes. O que está em jogo é a mutação do ideal político e democrático da Constituição Cidadã de 1988, que não se coaduna, em sua essência, com a escalada da subcidadania do trabalho.
[2] “Súmula 279 do STF – Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário.”